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... “Eu adoro todas as coisas E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. Tenho pela vida um interesse ávido Que busca compreendê-la sentindo-a muito. Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, Para aumentar com isso a minha personalidade. Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio E a minha ambição era trazer o universo ao colo Como uma criança a quem a ama beija.” Álvaro de campos

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sábado, 18 de dezembro de 2010

Clarice Lispector - Travessuras de uma menina - II


Travessuras de uma menina - II - Noveleta

Aprender eu não aprendia naquelas aulas. O jogo de torná-lo infeliz já ,e tomara demais. Suportand com desenvolta amargura as minhas pernas compridas e os sapatos sempre cambaios, humilhada por não ser uma flor e, sobretudo, torturada por uma infância enorme que eu temia nunca chegar a um fim - mais infeliz eu o tornava e sacudia com altivez a mnha única riqueza: os cabelos escorridos que eu planejava ficarem um dia bonitos com permanente e que por conta do futuro eu já exercitava sacudindo-os. Estudar eu não estudava, confiava na minha vadiação sempre bem- sucedida e que também ela, o professor tomava como mais uma provocação de menina odiosa. Nisso ele não tinha razão.A verdade é que não sobrava tempo para estudar. As alegrias me ocupavam, ficar atenta me tomava dias e dias; havia livros de história que eu lia roendo de paixão as unhas até o sabugo, nos meus primeiros êxtases de tristezas, refinamento que eu já descobrira; havia meninos que eu escolhera e que não me haviam escolhido, eu perdia horas de sofrimento porque eles eram inatingíveis, e mais outras horas de sofrimento aceitando-os com ternura, pois o homem era meu rei da Criação; havia a esperançosa ameaça do pecado, eu me ocupava com medo em esperar; sem falar que estava permanentemente ocupada em querer e não querer ser o que eu era, não me decidia por qual de mim, toda eu é que não podia; ter nascido era cheio de erros a corrigir. Não, não era para irritar o professor que eu não estudava; só tinha tempo de crescer. O que eu fazia para todos os lados, com uma falta de graça que mais parecia o resultado de um erro de cálculo: as pernas não combinavam com os olhos, e a boca era emocionada enquanto as mãos se esgalhavam sujas - na minha pressa eu crescia sem saber para onde. O fato de um retrato da época me revelar, a contrário uma menina bem plantada, selvagem e suave, com lhos pensativos embaixo da franja pesada, esse retrato real não me desmente, só faz é revelar uma fantasmagórica estranha que eu não compreenderia se fosse a sua mãe. Só muito depois, tendo finalmente me organizado em corpo e sentindo-me fundamentakmente mais garantida, pude me aventurar e estudar um pouco; antes, porém, eu não podia me arriscar a aprender, não queria me disturbar - tomava intuitivo cuidado com o que eu era, já que eu não sabia o que era, e com vaidade cultivava a integridade da ignorância. Foi pena o professor não ter chegado a ver aquilo em que quatro anos depois inesperadamente eu me tornaria: aos 13 anos, de mãos limpas, banho tomado, toda composta e bonitinha, ele me teria visto como um cromo de Natal à varanda de um sobrado. Mas, em vez dele, passara embaixo um ex-amiguinho meu, gritara alto o meu nome, sem perceber que eu já não era mais um moleque e sim uma jovem digna cujo nome não pode mais ser berrado pelas calçadas de uma cidade. "Que é?" indaguei do intruso com a maior frieza. Recebi então como resposta gritada a notícia de que o professor morrera naquela madrugada. E branca, de olhos muito abertos, eu olhara a rua vertiginosa a meus pés. Minha compostura quebrada como a de uma boneca partida.

Voltando a quatro anos atrás. Foi talvez por tudo o que contei, misturado e em conjunto, que escrevi a composição que o professor mandara, ponto de desenlace dessa história e começo de outras, ou foi apenas por pressa de acabar de qualquer modo o dever para poder brincar no parque.

- Vou contar uma história, disse ele, e vocês façam a composição. Mas usando as palavras de vocês. Quem for acabando não precisa esperar pela sineta, já pode ir para o recreio.

O que ele contou: um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo interio e continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não tinha o que comer começara a plantar no seu quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto começara a vender que terminara ficando muito rico.

Ouvi com ar de desprezo, ostensivamente brincando com o lápis, como se quisesse deixar claro que suas histórias não me ludibriavam e que eu bem sabia quem ele era. Ele contara sem olhar uma só vez para mim. É que na falta de jeito de amá-lo e no gosto de persegui-lo, eu também o acossava com o olhar: a tudo o que ele dizia eu respondia com um simples olhar direto, do qual ninguém em sã consciência poderia me acusar. Era um olhar que eu tornava bem límpido e angélico, muito aberto, como o da candidez olhando o crime. E conseguia sempre o mesmo resultado: com pertubação ele evitava meus olhos, começando a gaguejar. O que me enchia de um poder que me amaldiçoava. E de piedade. O que por sua vez me irritava. Irritava-mew que ele obrigasse uma porcaria de criança a compreender um homem.

Eram quase dez horas da manhã, em breve soaria a sineta do recreio. Aquele meu colégio, alugado dentro de um dos parques da cidade, tinha o maior campo de recreio que já vi. Era tão bonito para mim como seria para um esquilo ou um cavalo. Tinha árvores espalhadas, longas descidas e subidas e estendida relva. Não acabava nunca. Tudo ali era longe e grande, feito para pernas compridas de menina, com lugar para montes de tijolo e madeira de origem ignorada, para moitas de azedas begônias que nós comíamos, para sol e sombras onde abelhas faziam mel. Lá cabia um ar livre imenso. E tudo fora vivido por nós: já tínhamos rolado de cada declive, iintensamente cochichado atrás de cada monte de tijolo, comido de várias flores e em todos os troncos havíamos, a canivete, gravado datas, doces nomes feios e corações transpassados por flechas; meninos e meninas ali faziam seu mel.

Travessuras de uma menina II - Clarice Lispector

continua...

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