Blog da Galatéia

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... “Eu adoro todas as coisas E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. Tenho pela vida um interesse ávido Que busca compreendê-la sentindo-a muito. Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, Para aumentar com isso a minha personalidade. Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio E a minha ambição era trazer o universo ao colo Como uma criança a quem a ama beija.” Álvaro de campos

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segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Clarice Lispector


Conversa descontraída

Há quanto tempo não vejo um pôr-de-sol? E os que ví foram por acaso felizes. Talvez haja um pouco de pudor no fato de nunca ter ido à praia para ver o sol descer apaziguando-se e poder fixá-lo sem se me ofuscarem os olhos - e sem o brilho duro de seta fincada no meio-dia. Mas no ocaso o sol em declínio é doçura. E uma parte de nossa Terra tranforma-se em obscuro berço embalante.
A gradual escuridão me amedronta um pouco, bicho que sou e que toma cautela. Escuridão? medo e espanto. O dia morrendo em noite é um grande mistério da Natureza.
O que é Natureza? Pergunta difícil de se responder porque nós também fazemos parte dela e sem distância suficiente para encará-la: em mim ela brota de meu âmago qual semente que rompe a terra. Natureza - como explicar o seu significado único e total? como entender sua simplicidade enigmática? Nem me lembro como ou quando me ensinaram ou li essa palavra - mas não a explicaram. E no entanto entendi. Quem não sabe o que é jamais chegará a saber. Há coisas que não se aprendem.
Espanta-me a Natureza neste mundo que é Deus. E num planeta em que até entre as areias do deserto acontece a vida.
Ainda langorosa do fim do ano, vou então falar do deserto, já que comecei. Estive uma vez à beira do Saara, além das pirâmides. O deserto. A perder-se de vista. Por todos os lados a perdição. A visão de sua extensão nos é cortada pela linha do horizonte como o mar, e, como o mar, é tão profundo.
Experimentei temor ao olhar para o deserto. Quereria depressa atravessá-lo e já estar do outro lado. Também outra vez sobrevoei o Saara e o mesmo temor avisou-me o coração. Imaginei-me perdida e sozinha nas areias infindáveis onde não há rumos, meu Deus. Eu gritaria em vão por socorro.
Vou parar por aqui mesmo para não fabricar angústia em ninguém: o que se quer é um 1972 sem muita angústia. Uma ponte bem lançada que se estenda com graça e leveza levando-nos a 1973 sem se sentir.
Falei em angústia. O que é angústia? Na verdade minha tendência a indagar e a significar já é em si uma angústia. Esta começa com a vida. Cortam o cordão umbilical: dor e separação. E enfim choro de viver.
Viver? Viver é coisa muito séria. É sem brincadeira nenhuma. Embora aqui esteja eu a brincar de ano precioso e novo. Levo a vida deveras e frente a frente. Nestes momentos de "agora mesmo" estou vivendo tão leve que mal pouso na página, e ninguém me pega porque dou um jeito de escorregar. Tive que aprender.
Às vezes não se precisa ter medo da angústia: ela pode ser fértil e dar frutos de alegria e pureza. Mas "é preciso não ter medo de criar", escrevi eu mesma há muitos anos. Estou é achando muito esquisito eu me citar...
Criação é coisa secreta e de natureza obscura. De que ponto do ser nasceu em Stravinski o Pássaro de fogo? Da alma, está bem. Mas onde fica a alma do ser?
Nunca me imaginei escrevendo sobre "alma". Mas a conversa arrastou consigo outra conversa e eis-me aqui de corpo e alma presentes num jornal. O que se chama se essência está em alguma parte do ser. Qual é a essência da vida?
Ah, o que desconheço me ultrapassa. A verdade ultrapassa-me com tanta paciência e doçura.
Queria ultrapassar-me em 1972 e andar à minha própria frente. Sem dor. Ou só com dores de parto que dão um nascimento de coisa nova. Também porque, ao ultrapassar-se, sai-se de si e se cai no "outro". O outro é sempre muito importante.
O verão está instalado no meu coração.
E de tudo - resta esta última frase que me veio isolada, solta e sem se explicar. Assim somos nós? Sem explicação?
Se assim somos, amém.
1972? Amém.
Recuso-me a ser um fato consumado.
Por enquanto sobrenado na preguiça. Adeus.

Clarice Lispector - em A descoberta do mundo



beijokas!

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