Blog da Galatéia

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... “Eu adoro todas as coisas E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. Tenho pela vida um interesse ávido Que busca compreendê-la sentindo-a muito. Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, Para aumentar com isso a minha personalidade. Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio E a minha ambição era trazer o universo ao colo Como uma criança a quem a ama beija.” Álvaro de campos

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sábado, 9 de julho de 2011

Voltaire


Cosi-Sancta – Um Pequeno Mal por um Grande Bem


É uma das tantas máximas falsamente acreditadas, essa de que não é permitido fazer um pequeno mal de que possa resultar um bem maior. Mas era assim que pensava Santo Agostinho, como se pode depreender da narrativa desta pequena aventura acontecida na sua diocese, sob o proconsulado de Septímio Acindino, e que vem no livro da Cidade de Deus.

Havia em Hipona um velho cura, grande inventor de confrarias, confessor de todas as raparigas da vizinhança, e que passava por homem inspirado de Deus, pois costumava deitar sortes, ofício de que se desempenhava assaz passavelmente.

Levaram-lhe um dia uma jovem chamada Cosi-Sancta; era a mais bela criatura da província. Tinha pais jansenistas que a haviam educado nos princípios da mais rígida virtude; e, de todos os pretendentes que tivera, não houvera um só que lhe causasse um momento de distração nas suas preces. Fazia alguns dias que fora ela prometida a um velhote encarquilhado, chamado Capito, conselheiro do presidial de Hipona. Era um homenzinho brusco e rabugento a quem não faltava inteligência, mas que era ríspido de conversação, escarninho, e amante de brincadeiras de mau gosto; e, de resto, ciumento como um veneziano, e que por nada no mundo se teria conformado em ser amigo dos galanteadores da esposa. A jovem criatura fazia o possível para amá-lo, pois que ele deveria ser seu marido; mas por maior boa-fé com que se empenhasse em tal coisa não conseguia nada.

Foi pois consultar o seu cura para saber se seria feliz no casamento. O nosso padre disse-lhe num tom profético:

Minha filha, a tua virtude causará desgraças, mas serás um dia canonizada por teres sido três vezes infiel a teu esposo.

Esse espantoso oráculo escandalizou cruelmente a inocência da bela rapariga. Ela pôs-se a chorar; depois pediu explicações, julgando que tais palavras ocultavam, algum sentido místico; mas a única explicação que conseguiu foi que as três vezes não deviam ser interpretadas como três encontros com o mesmo amante, mas sim como três aventuras diferentes.

Cosi-Sancta pôs-se então aos gritos; chegou até a dizer algumas injúrias ao bom do cura, e jurou que nunca seria canonizada. E no entanto o foi, como já ides ver.

Casou-se pouco depois: as núpcias foram esplêndidas; ela suportou muito bem todos os maus discursos que teve de ouvir, todos os trocadilhos sem graça, todas as grosserias mal disfarçadas com que costumam constranger o pudor das noivas. Dançou de bom grado com alguns jovens muito bem parecidos e com os quais o marido não simpatizou absolutamente.

E foi deitar-se ao lado do pequeno Capito, com um pouco de repugnância. Passou boa parte da noite a dormir; e acordou-se muito pensativa. Mas o assunto das suas cismas não era tanto o marido, e sim um jovem chamado Ribaldos, que lhe tomara conta do pensamento, sem que ela propriamente o suspeitasse. Esse jovem parecia formado pelas mãos do Amor, de quem tinha as graças, a ousadia e o espírito travesso; era um pouco indiscreto, mas só com aquelas que no fundo assim queriam: era a coqueluche de Hipona. Incompatibilizara todas as mulheres da cidade umas com as outras e, por sua vez, estava incompatibilizado com todos os maridos e todas as mães. Amava, de ordinário, por estouvamento, e um pouco por vaidade; mas amou Cosi-Sancta por gosto, e tanto mais perdidamente quanto mais difícil se lhe antolhava a conquista.

Como homem de espírito que era, aplicou-se de início em agradar ao marido. Fazia-lhe mil cumprimentos, felicitava-o por sua boa fisionomia e seu espírito arejado e galante. Perdia para ele no jogo, e todos os dias lhe fazia alguma pequena confidência. Cosi-Sancta achava-o a criatura mais amável do mundo. Já o amava mais do que supunha; era verdade que não o suspeitava, mas o marido suspeitou por ela. Embora tivesse todo o amor-próprio que um homenzinho possa ter, não deixou de desconfiar que as visitas de Ribaldos não eram somente para ele. Rompeu com este sob qualquer pretexto, e proibiu-lhe a entrada em casa.

Cosi-Sancta ficou muito aborrecida, mas não ousou dizê-lo; e Ribaldos, cujo amor crescera com as dificuldades, passava todo o tempo a espiar uma oportunidade para a ver. Disfarçou-se de monge, de vendedor de roupas, de apresentador de títeres. Mas não fez o bastante para triunfar de sua amada, e fez demasiado para que não fosse reconhecido pelo esposo. Se Cosi-Sancta estivesse em combinação com ele, saberiam ambos como tomar as necessárias medidas para que o marido nada suspeitasse; mas, visto que ela combatia as suas inclinações, e nada tinha a censurar-se, salvava tudo, fora as aparências, e o marido a julgava culpabilíssima.

O homenzinho, que era muito colérico e que imaginava que a sua honra dependia da fidelidade da mulher, ultrajou-a cruelmente, e puniu-a pelo fato de a acharem bela. E Cosi-Sancta se viu na mais horrível situação em que possa estar uma mulher: acusada injustamente e maltratada por um marido a quem era fiel, e dilacerada por uma paixão violenta que procurava dominar.

Achou que, se o seu apaixonado parasse com as perseguições, poderia o marido parar com as injustiças, e que ela se daria por muito feliz curando-se de um amor que nada mais alimentava. Nessa intenção, aventurou-se a escrever a Ribaldos a seguinte carta:

Se tendes virtude, deixai de tornar-me infeliz: vós me amais, e o vosso amor me expõe às suspeitas e às violências de um senhor que eu me impus para o resto da vida. Quem dera que fosse esse o único risco em que eu incorro! Por piedade, deixai de perseguir-me; conjuro-vos a isso por este mesmo amor que constitui vossa desgraça e a minha, e que jamais vos poderá fazer feliz.

Não previra a pobre Cosi-Sancta que uma carta tão terna, embora tão virtuosa, causasse um efeito inteiramente contrário ao que esperava. Só serviu para inflamar mais do que nunca o coração de seu enamorado, que resolveu expor a vida para avistar-se com ela.

Capito, que era assaz tolo para querer ser informado de tudo e que tinha bons espiões, foi avisado de que Ribaldos se disfarçara em carmelita pedinte para ir implorar caridade à sua mulher. Julgou-se perdido: imaginou que um hábito de carmelita era muito mais perigoso que qualquer outro para a honra de um marido. Contratou alguns homens para darem uma sova no irmão Ribaldos, no que foi muito bem servido. O jovem, ao entrar na casa, foi recebido pelos tais senhores: por mais que bradasse que era um honrado carmelita e que não era assim que se tratavam pobres religiosos, recebeu valente sova, vindo a morrer dali a quinze dias de um golpe que recebera na cabeça. Choraram-no todas as mulheres da cidade. Cosi-Sancta ficou inconsolável. O próprio Capito aborreceu-se muito, mas por outro motivo: é que se metera numa terrível situação.

Ribaldos era parente do procônsul Acindino. Quis esse romano dar um castigo exemplar àquele assassínio, e, como outrora tivera algumas questões com o presidia de Hispano, não se incomodou em achar tal pretexto para enforcar um conselheiro; e ainda mais se agradou de que a sorte coubesse a Capito, que era na verdade o mais vaidoso e insuportável togado da região.

Cosi-Sancta vira pois assassinarem o seu apaixonado, e estava prestes a ver enforcarem o marido; e tudo isso por ter sido virtuosa. Porque, como já disse, se houvesse concedido seus favores a Ribaldos, o marido teria sido muito menos enganado.

Eis como se cumprira a metade da predição do cura. Cosi-Sancta lembrou-se então do oráculo, e muito se arreceou de cumprir o resto. Mas, tendo refletido que não se pode vencer o destino, entregou-se à Providência, que a levou ao fim pelos mais honestos caminhos do mundo.

O procônsul Asinino era um homem mais debochado que voluptuoso, que muito pouco se divertia nas preliminares, um sujeito brutal, sem cerimônias, verdadeiro herói de guarnição, muito temido na província, e com quem todas as mulheres de Hispano haviam tido um caso, unicamente para evitar complicações.

Mandou chamar a senhora Cosi-Sancta. Ela chegou banhada em lágrimas, o que não deixava de lhe aumentar os encantos.

— Vosso marido, Senhora, vai ser enforcado, e só de vós depende a sua salvação.

— Eu daria a minha vida pela sua – respondeu-lhe a dama.

— Ha! mas não é isso que se vos pede – replicou o procônsul.

— Que é preciso então fazer? – indagou ela.

— Desejo apenas uma de vossas noites – tornou o procônsul.

— Elas não me pertencem – disse Cosi-Sancta. – São um bem de meu marido. Darei meu sangue para salvá-lo, mas não posso dar a minha honra.

— Mas se vosso marido consentir? – perguntou o procônsul.

— Ele é o proprietário – respondeu a dama – e cada qual tem o direito de dispor dos seus bens como lhe aprouver. Mas conheço meu marido, não abrirá mão de nada; é um sujeitinho cabeçudo, que preferirá deixar-se enforcar a permitir que me toquem com um dedo.

— É o que veremos – disse o juiz, encolerizado.

Imediatamente manda chamar o criminoso; propõe-lhe ou a forca ou um par de ornamentos: não havia outra alternativa. O homenzinho começou com coisas. Mas afinal fez o que qualquer outro teria feito no seu lugar. Sua esposa, por pura caridade, salvou-lhe a vida. E foi essa a primeira das três vezes.

No mesmo dia o seu filho caiu doente de uma enfermidade assaz extraordinária e que nenhum médico de Hipona conhecia. Só havia um que estava a par dos segredos dessa doença, mas que morava em Áquila, a algumas léguas de Hipona. Era então proibido que um médico estabelecido numa cidade saísse desta para ir exercer em outra a sua profissão. Cosi-Sancta viu-se obrigada a ir procurá-lo pessoalmente em Áquila, com um irmão que tinha e a quem estimava muito. No caminho foi detida por salteadores. O chefe dos referidos cavalheiros achou-a muito bonita. E, como o irmão de Cosi-Sancta estava prestes a ser morto, aproximou-se e disse-lhe que, se ela tivesse um pouco de complacência, não lhe matariam o irmão e que isso afinal não lhe custaria nada. A coisa era urgente. Cosi-Sancta acabava de salvar a vida do marido, a quem não amava; ia perder um irmão a quem estimava muito; por outro lado, alarmava-a o perigo de seu filho; não havia um minuto a perder. Ela encomendou-se a Deus, e fez tudo o que quiseram. E foi essa a segunda das três vezes.

No mesmo dia chegou em Áquila e foi ter com o médico. Era um desses médicos da moda que as mulheres mandam chamar quando têm vapores ou quando não têm absolutamente nada. Era confidente de umas e amante de outras; homem polido, condescendente, um pouco estremecido aliás com a Faculdade, contra a qual fizera a propósito uns bem aplicados gracejos.

Cosi-Sancta lhe expôs a doença do filho e ofereceu-lhe um sestércio grande. (E notai que um desses sestércios corresponde, em moeda de França, a mais de mil escudos.)

— Não é. com essa moeda que eu pretendo ser pago, Senhora – respondeu o galante médico. – Eu próprio vos ofereceria todos os meus haveres, se quisésseis cobrar as curas que podeis fazer: curai-me apenas do mal que me causais, e eu devolverei a saúde a vosso filho.

A proposta pareceu extravagante à dama, mas o destino a acostumara às coisas mais estranhas. O médico era um teimoso que não queria outro preço pelo seu remédio. Cosi-Sancta não tinha o marido à mão, para o consultar. Mas como deixar morrer um filho a quem adorava, por falta daquele pequeno auxílio que ela lhe poderia dar?! Era tão boa mãe quanto boa irmã. Comprou o remédio pelo preço que lhe pediram. E foi essa a última das três vezes.

Voltou a Hipona com o irmão, que não cessava de agradecer-lhe, durante o caminho, a coragem com que lhe salvara a vida.

Assim Cosi-Sancta, por ter sido, demasiado virtuosa, fez morrer o seu amado e condenar o marido à morte, e, por ter sido complacente, conservou os dias do irmão, do filho e do marido. Acharam que uma mulher como essa era muito necessária em uma família, canonizaram-na após a morte, por ter feito tanto bem a seus parentes, mortificando-se, e gravaram-lhe no túmulo: UM PEQUENO MAL POR UM GRANDE BEM.

Voltaire


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sexta-feira, 8 de julho de 2011

Virginia Woolf


Segunda ou Terça-feira



Preguiçosa e indiferente, vibrando facilmente o espaço com suas asas, conhecendo seu rumo, a garça sobrevoa a igreja por baixo do céu. Branca e distante, absorta em si mesma, percorre e volta a percorrer o céu, avança e continua. Um lago? Apaguem suas margens! Uma montanha? Ah, perfeito – o sol doura-lhe as margens. Lá ele se põe. Samambaias, ou penas brancas para sempre e sempre.

Desejando a verdade, esperando-a, laboriosamente vertendo algumas palavras, para sempre desejando – (um grito ecoa para a esquerda, outro para a direita. Carros arrancam divergentes. Ônibus conglomeram-se em conflito) para sempre desejando – (com doze batidas eminentes, o relógio assegura ser meio-dia; a luz irradia tons dourados; crianças fervilham) – para sempre desejando a verdade. O domo é vermelho; moedas pendem das árvores; a fumaça arrasta-se das chaminés; ladram, berram, gritam “Vende-se ferro!” – e a verdade?

Radiando para um ponto, pés de homens e pés de mulheres, negros e incrustados a ouro – (Este tempo nublado – Açúcar? Não, obrigado – a comunidade do futuro) – a chama dardejando e enrubescendo o aposento, exceto as figuras negras com seus olhos brilhantes, enquanto fora um caminhão descarrega, Miss Fulana toma chá à escrivaninha e vidraças conservam casacos de pele.

Trêmula, leve-folha, vagueando nos cantos, soprada além das rodas, salpicada de prata, em casa ou fora de casa, colhida, dissipada, desperdiçada em tons distintos, varrida para cima, para baixo, arrancada, arruinada, amontoada – e a verdade?

Agora recolhida pela lareira, no quadrado branco de mármore. Das profundezas do marfim ascendem palavras que vertem seu negrume. Caído o livro; na chama, no fumo, em momentâneas centelhas – ou agora viajando, o quadrado de mármore pendente, minaretes abaixo e mares indianos, enquanto o espaço investe azul e estrelas cintilam – verdade? Ou agora, consciente da realidade?

Preguiçosa e indiferente, a garça retoma; o céu vela as estrelas; e então as revela.

Virginia Woolf

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quinta-feira, 7 de julho de 2011

Oscar Wild


O Artista

Um dia, despertou-lhe na alma o desejo de esculpir uma estátua do Prazer que dura um instante. E partiu pelo mundo à procura do bronze, porque ele só podia trabalhar o bronze. Mas todo o bronze existente no mundo havia desaparecido e em nenhuma parte o metal seria encontrado, a não ser na estátua da Dor que é permanente.

E fora ele que, com as próprias mãos, fundira essa estátua, erigindo-a no túmulo de alguém a quem muito amara na vida. E na tumba da morta, que tanto amara, colocou a própria criação, como um símbolo do amor masculino, que é imortal, e a dor humana, que dura a vida inteira.

E em todo o mundo não havia bronze, a não ser o dessa estátua.

Ele, então, retirou a estátua que moldará, põ-la num grande forno, deixando-a derreter-se.

E com o bronze da estátua da Dor que é permanente, fundiu a do Prazer que dura um instante.

Oscar Wild


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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Clarice - O primeiro beijo


O Primeiro Beijo


Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.

- Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele foi simples:

- Sim, já beijei antes uma mulher.

- Quem era ela? perguntou com dor.

Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.

O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes quieto, sem quase pensar, e apenas sentir – era tão bom. A concentração no sentir era difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.

E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.

E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo.

A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.

E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto? Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.

Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando entre os arbustos, espreitando, farejando.

O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre arbustos estava… o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz de pedra, antes de todos.

De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora podia abrir os olhos.

Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a água.

E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.

Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida… Olhou a estátua nua.

Ele a havia beijado.

Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido.

Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.

Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele…

Ele se tornara homem.




Clarice Lispector
“Felicidade Clandestina” – Ed. Rocco – Rio de Janeiro, 1998

:) Bom dia!*****************************************

terça-feira, 5 de julho de 2011

Lispector - A repartição dos Pães


A Repartição dos Pães


Era sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos. Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu sábado – que fora da janela se balançava em acácias e sombras – eu preferia, a gastá-lo mal, fechá-la na mão dura, onde eu o amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o sábado,ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.

Só a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir, qualquer trem – menos ficar naquela estação vazia, menos ter que refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros, outros cavalos.

Passamos afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para nós…

Era uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.

A mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos – tudo emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse.

Junto do prato de cada mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera – mesmo sem nos eleger, mesmo sem nos amar – um ramo de trigo ou um cacho de rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho, quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. ‘Tudo como é, não como quiséramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe.

Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então, como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.

Não havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia vinho, com os olhos tornava conta do leite. Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos, cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a existência já existe. Existe como um chão onde nós todos avançamos. Sem uma palavra de amor. Sem uma palavra. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e nós comemos.

Pão é amor entre estranhos.

Clarice Lispector
Extraído do livro Laços de família, Ed. Francisco Alves, Rio de Janeiro, 1991


*************************BOM DIA! :) *******************************

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Os bonecos de barro - Clarice Lispector


Os Bonecos de Barro


O que ela amava acima de tudo era fazer bonecos de barro — o que ninguém lhe ensinara. — Trabalhava numa pequena calçada de cimento em sombra, junto à última janela do porão. Quando queria com muita força ia pela estrada até ao rio. Numa de suas margens, escalável embora escorregadia, achava-se o melhor barro que alguém poderia desejar: branco, maleável, pastoso: frio. Só em pegá-lo, em sentir sua frescura delicada, alegrezinha e cega, aqueles pedaços timidamente vivos, o coração da pessoa se enternecia úmido quase ridículo. Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada — na lata presa à cintura iam se reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela mexia os dedos úmidos com excitação e clareza. As mãos livres, ela então cuidadosamente galgava a margem até a extensão plana . No pequeno pátio de cimento depunha a sua riqueza. Misturava o barro à água, as pálpebras frementes de atenção — concentrada, o corpo à escuta, ela podia obter uma porção exata de barro e de água numa sabedoria que nascia naquele mesmo instante, fresca e progressivamente criada. Conseguia uma matéria clara. e tenra de onde se poderia modelar um mundo.

Como, como explicar o milagre… Ela se amedrontava pensativa. Nada dizia, não se movia, mas interiormente sem nenhuma palavra repetia: Eu não sou nada, não tenho orgulho, tudo me pode acontecer; se quiser, me impedirá de fazer a massa de barro; se quiser, pode me pisar, me estragar tudo; eu sei que não sou nada. Era menos que uma visão, era uma sensação no corpo, um pensamento assustado sobre o que lhe permita conseguir tanto barro e água e diante de quem ela devia humilhar-se com seriedade . Ela lhe agradecia com uma alegria difícil, frágil e tensa; sentia em alguma coisa como o que não se vê de olhos fechados. Mas o que não se vê de olhos fechados tem uma existência e uma força, como o escuro, como a ausência — compreendia-se ela, assentindo feroz e muda com a cabeça. Mas nada sabia de si, passaria inocente e distraída pela sua realidade sem reconhecê-la; como uma criança, como uma pessoa.

Depois de obtida a matéria, numa queda de cansaço ela poderia perder a vontade de fazer bonecos. Então ia vivendo para a frente como uma menina.

Um dia, porém, sentia seu corpo aberto e fino, e no fundo uma serenidade que não se podia conter, ora se desconhecendo, ora respirando trêmula de alegria, as coisas incompletas. Ela mesma insone como luz — esgazeada, fugaz, vazia, mas no íntimo um ardor que era vontade de guiar-se a uma só coisa, um interesse que fazia o coração acelerar-se sem ritmo… de súbito, como era vago viver. Tudo isso também poderia passar, a noite caindo repentinamente, a escuridão fresca sobre o dia morno.

Mas às vezes ela se lembrava do barro molhado, corria alegre e assustada para o pátio: mergulhava os dedos naquela mistura fria, muda e constante como uma espera; amassava, amassava, aos poucas ia extraindo formas. Fazia crianças, cavalos, uma mãe com um filho, uma mãe sozinha, uma menina fazendo coisas de barro, um menino descansando, uma menina contente, uma menina vendo se ia chover, uma flor, um cometa de cauda salpicada de areia lavada e faiscante, uma flor murcha com sol por cima, o cemitério do Brejo Alto, uma moça olhando… Muito mais, muito mais. Pequenas formas que nada significavam, mas que eram na realidade misteriosas e calmas. Às vezes alta como uma árvore alta, mas não eram árvores, m:to eram nada…Ás vezes um pequeno objeto de forma quase estrelada, mas sério e cansado como uma pessoa. Um trabalho que jamais acabaria, isso era o que de mais bonito e atento ela já soubera. Pois se ela podia fazer o que existia e o que não existia!…

Depois de prontos, os bonecos eram colocados ao sol. Ninguém lhe ensinara, mas ela os depositava nas manchas de sol no chão, manchas sem vento nem ardor. O barro secava mansamente, conservava o tom claro, não enrugava, não rachava. mesmo quando seco parecia delicado, evanescente e úmido. E ela própria podia confundi-lo com o barro pastoso. As figurinhas assim, pareciam rápidas, quase como se fossem se desmanchar — e isso era como se elas fossem se movimentar. Olhava para o boneco imóvel e mudo. Por amor ou apenas prosseguindo o trabalho ela fechava os olhos e se concentrava numa força viva e luminosa, da qualidade do perigo e da esperança, numa força de sede que lhe percorria o corpo celeremente com um impulso que se destinava à figura. Quando, enfim, se abandonava, seu fresco e cansado bem-estar vinha de que ela podia enviar, embora não soubesse o que, talvez. Sim ela às vezes possuía um gosto dentro do corpo, um gosto alto e angustiante que tremia entre a força e o cansaço — era um pensamento como sons ouvidos, uma flor no coração: Antes que ele se dissolvesse, maciamente rápido, no seu ar interior, para sempre fugitivo, ela tocava com os dedos num objeto, entregando-o. E, quando queria dizer algo que vinha fino, obscuro e liso — e isso poderia ser perigoso — ela encostava um dedo apenas, um dedo pálido, polido e transparente, um dedo trêmulo de direção. No mais agudo e doído do seu sentimento ela pensava: Sou feliz. Na verdade, ela o era nesse instante, e se em vez de pensar: Sou feliz, procurava o futuro, era porque, obscuramente, escolhia um movimento para a frente que servisse de forma à sua sensação.

Assim juntara uma procissão de coisas miúdas. Quedavam-se quase despercebidas no seu quarto. Eram bonecos magrinhos e altos como ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco perplexos — às vezes, subitamente, pareciam um homem coxo rindo. Mesmo suas figurinhas mais suaves tinham uma imobilidade atenta como a de um santo. E pareciam inclinar-se, para quem as olhava, também como os santos. Virgínia podia fitá-las uma manhã inteira, que seu amor e sua surpresa não diminuiriam.

— Bonito… bonito como uma coisinha molhada, dizia ela excedendo-se num ímpeto imperceptível e doce.

Ela observava: mesmo bem acabados, eles eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente, ela pensava que nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento . Era como se eles só pudessem se aperfeiçoar por si mesmos, se isso fosse possível.

As dificuldades surgiam como uma vida que vai crescendo. Seus bonecos, pelo efeito do barro claro, eram pálidos. Se ela queria sombreá-los não o conseguia com o auxílio da cor, e por força dessa deficiência aprendeu a lhes dar sombra ainda por meio de forma. Depois inventou uma liberdade: com uma folhinha seca sob um fino traço de barro conseguia um vago colorido, triste assustada quase inteiramente morto. Misturando barro à terra, obtinha ainda outro material menos plástico, porém mais severo e solene. MAS COMO FAZER O CÉU? Nem começar podia! Não queria nuvens — o que poderia obter, pelo menos grosseiramente — mas o céu, o céu mesmo, com sua existência, cor solta, ausência de cor. Ela descobriu que precisava usar uma matéria mais leve que não pudesse sequer ser apalpada, sentida, talvez apenas vista, quem sabe! Compreendeu que isso ela conseguiria com tintas.

E às vezes numa queda, como se tudo se purificasse, ela se contentava em fazer uma superfície lisa, serena, unida, numa simplicidade fina e tranqüila.

Clarice Lispector

O texto acima foi publicado na revista Nordeste – Ano XIII, nº 2, julho de 1960, Recife-PE - e consta do romance O Lustre, publicado em 1946.

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Clarice Lispector


(...) "ah, Deus, e que tudo venha e caia sobre mim,
até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos
porque basta me cumprir
e então nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo,
de qualquer luta ou descanso me levantarei
forte e bela como um cavalo novo."

Perto do coração selvagem - Clarice Lispector

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Voltando... quase chegando... beijokas a todos! :)